Costuma-se diminuir a importância dos anos 90 e seu legado musical – inicialmente por tratarem a década como uma simples “ressaca” dos inovadores anos 80, e a partir daí considerar a produção do período como um rescaldo derivativo do que havia sido instituído e solidificado no decênio anterior. Diria um engenheiro que tudo é questão de ponto de vista: foi um momento rico, produtivo e cheio de som e fúria sim, mas também de inevitável (talvez traumática) renovação. A ascensão alternativa, com a explosão do “som de Seattle”, forçou diversos estilos a se adaptarem – o thrash metal entre eles: as bandas que moldassem seus esforços em conjunto com o que o mercado exigia (Metallica do “Black Album”, Anthrax com “John Bush“, Sepultura e seu “Roots”), podiam sonhar com o megaestrelato ou ser arremessadas novamente ao underground. Dois aniversariantes do dia 24 de setembro último são pontos fundamentais nessa improvável interseção: “Rust in Peace” do Megadeth, que completou 30 anos de vida, e “Nevermind” do Nirvana, agora com 29 aninhos.
Rust in Peace sepultou a era do grande thrash. O disco, que de certa forma nasceu como resposta à assepsia progressiva e virtuosismo fantasmático de “…And Justice for All” do Metallica (Mustaine tem mania de andar no rastro do seu ex-grupo, ou nós que teimamos em sempre procurar conexão entre os dois?), é a última obra-prima de fato do chamado “Big Four”, um disco-limite, o auge do ideário formal de seu criador, o registro mais neurótico e obsessivo de um cara notadamente neurótico e obsessivo.
Ele, o guitarrista/vocalista Dave Mustaine, apostou alto em uma fusão delirante de técnica e agressividade, adicionou acidez narrativa que tornava seu mal-estar ainda mais veemente, e daí fez surgir uma epifania nuclear. “Rust in Peace” foi concebido por um norte-americano que vivia ao mesmo tempo no epicentro na Guerra Fria e na pátria criadora do thrash, terra natal de seus trabalhos mais festejados – lida de frente com a história, tanto política quanto musical, do primeiro ao último momento; posiciona-se com amargor perante o cinismo do conflito que atemorizava o planeta, e encontra na ferocidade do discurso a força ideal para redesenhar o estilo que o próprio Megadeth ajudara a inventar. “Five Magics”, “Tornado of Souls”, “Take No Prisioners” e as indefectíveis “Holy Wars” e “Hangar 18” viam pouco sentido nas mecânicas da existência, mas paradoxalmente renovavam a esperança no poder criativo do ser humano – e esse tênue equilíbrio, quando alcançado, faz de um simples disco uma obra imortal.
Já “Nevermind” é um daqueles momentos que definem o mundo a partir de si: o último ato realmente revolucionário da música, o álbum que colocou uma indústria de joelhos, o que gerou a criação de um estilo, o grunge, unicamente para abarcar o tsunami de imitadores/seguidores que gerou, o que rompeu as fronteiras das “rádios rock” rumo a um resultado universal. Sempre houve grande dificuldade para enquadrar o Nirvana: enquanto seu background era um verdadeiro all-star do cenário indie americano (Sonic Youth, Pixies, Vaselines, Meat Puppets), o som da guitarra de Kurt Cobain exalava uma crueza vinda diretamente do punk, mesclada ao garage rock que o cantor tanto admirava.
Arguto conhecedor de música, fã que conseguiu estar lado a lado com aqueles que o influenciaram, sujeito criativo mas com ambições a princípio modestas, se viu saído da Sub Pop direto ao trono antes ocupado por aqueles desde a origem preparados para ele – artistas pop, hair metal, gangsta rappers, dinossauros de outras épocas, todos se viram destituídos de suas glamorosas hegemonias em favor de um cara de barba desgrenhada, camisa de flanela e cabelo seboso. A simplicidade parecia estar de volta, mas só na aparência: existia bastante cálculo em “Nevermind”, sua produção (a cargo de Butch Vig) era meticulosamente caprichada, e as composições de Cobain, que passavam de espectros etéreos a brados estridentes em um piscar de olhos, continham a fórmula certa para mesmerizar as massas. E, com justiça, foi o que aconteceu.
Como encontrar uma conexão entre esses dois discos, a princípio tão díspares? Dentro das próprias trajetórias de seus grupos, talvez como ‘estranhos no ninho’. Existem óbvias conexões entre os registros pregressos do Megadeth e “Rust in Peace”, assim como encontramos muito de “Nevermind” em “Bleach” e algo no “Incesticide”. Mas, mesmo que sejam encarados como pedras fundamentais, não estabeleceram caminhos para seus criadores: enquanto Mustaine enveredou por sonoridades mais melodiosas e comedidas a partir de “Countdown to Extinction” (um pouco depois de o Metallica tomar a mesma decisão, inclusive – tudo apenas coincidência, claro…), Cobain entendeu que partir para o comercialismo puro e simples transformaria o Nirvana no exato oposto daquilo que idealizara desde sempre, e chamou Steve Albini para auxiliar na concepção de “In Utero”, álbum anti-público por excelência, um dos mais formidáveis e corajosos tiros no pé intencionais já dados por um artista. A partir daí, resultados também adversos: Dave tornou-se um rockstar, posição que seu ego de retro-escavadeira sempre almejou, e contabiliza quatro décadas de carreira; Kurt não suportou os encargos do megaestrelato e deu cabo da própria vida, em 1994.
Rust in Peace na íntegra:
Nevermind na íntegra:
Ambos os grupos estiveram no Brasil nas turnês de divulgação dos respectivos álbuns – o Megadeth no Rock in Rio de 1991; o Nirvana, no Hollywood Rock de 93 (show confuso, que gera discussão até hoje). Raridade em eras pré-Internet: artistas em seu auge tocando fogo em nosso Brasão velho de guerra.