Entre os inúmeros shows do Life Is A Lie aos quais compareci na década passada (perdi a conta ao passar dos quarenta), um momento em especial me marcou bastante – quando o vocalista Lord Vicious citava, entre uma paulada grind e outra, certa frase de Nelson Rodrigues que funcionava como uma marretada em meu estômago: “amar é ser fiel a quem te trai”. Aí está uma pessoa com referências artísticas precisas, e também alguém com visão peculiarmente torta em relação a assuntos humanos, pensava com meus botões – e a forma escolhida para musicar essas ideias ter sido o som extremo mais original e feroz praticado à época tornava o todo oferecido pelo LIAL ainda mais impactante. Quando descobri os álbuns, e principalmente suas letras e notas de rodapé, fui obrigado de imediato a procurar por outros escritos dessa pena implacável que elaborava a temática intrincada (e evidentemente literária) do sexteto – assim, encontrei Leandro Márcio Ramos, nome civil de Lord Vicious e com o qual assinava textos sobre vida moderna, desilusões afetivas e toda sorte de temas viscerais que me despertaram identificação imediata.
Leandro é “patrimônio” do Monophono: conversamos sobre seu primeiro livro, “Tudo Que É Grande Se Constrói Sobre Mágoa”, na primeira encarnação deste website (confira aqui); agora nosso assunto é “Histórias de Amantes”, nova experiência do autor na literatura, fanzine em formato brochura com 14 histórias focadas na intensidade intransferível de encontros entre casais, e os desdobramentos (por vezes catastróficos, na maior parte inevitáveis) que somente as epifanias geradas pela conquista de uma intimidade absoluta podem (ou não) explicar. Confira!
Monophono: O cineasta sueco Ingmar Bergman disse certa vez: “o amor é a pior das pestes” (filme “O Sétimo Selo”). Você pensa da mesma forma?
Leandro Márcio Ramos: Não conhecia essa frase do Bergman, e tampouco concordo com ele. O amor é um sentimento extremo, talvez o mais extremo de todos, e categorizá-lo como uma peste me parece totalmente injusto – retira a sua dimensão de produzir êxtases e de construir elos que extrapolam o meramente humano. Quantos feitos maravilhosos foram alcançados com e em nome do amor? Não é possível chamá-lo de peste, a não ser que se ignore a sua dimensão criadora.
Monophono: Algum autor específico o fez criar um interesse maior pela estética literária do amor?
Leandro: Não apenas um, mas alguns autores que li na adolescência certamente me influenciaram muito e despertaram o interesse pelo tema, que permeia boa parte de meus escritos. O primeiro foi sem dúvida alguma Álvares de Azevedo com “Noite na Taverna”: a ambientação ultrarromântica do amor idealizado e as figuras desesperadamente apaixonadas retratadas nas páginas desse livro foram marcantes. O amor colocado em um pedestal quase inalcançável, a impossibilidade de concretização e o clima soturno desses textos combinavam bastante com minhas audições iniciais de pós-punk (Sisters of Mercy e Christian Death especialmente) – o que, somado às primeiras experiências amorosas decepcionantes naquele momento, fizeram do Álvares de Azevedo um modelo a ser seguido. Lembro inclusive que as primeiras coisas que rascunhei foram nessa época. Tenho até um conto que escrevi naquele momento (segundo ano do ensino fundamental) onde participei de um concurso literário na escola e fiquei em segundo lugar: era um conto 100% inspirado em “Noite da Taverna”, ambientação fantasmagórica e tudo o mais, com direito a casarão abandonado e coisas assim.
O segundo autor foi Dostoiévski com a novela “Noites Brancas”. A forma absurdamente brusca com que esse texto termina, onde Nastienka deixa o narrador apaixonado para retornar ao seu antigo amante sem nenhuma explicação, pegou pesado em mim. Como alguém pode dizer “eu te amo” e logo em seguida fazer isso? Como algo tão sublime e bonito termina desse modo tão abjeto? Eu tinha dezesseis anos, era um adolescente absurdamente tímido, sem experiência nenhuma, e essas leituras todas, juntamente às audições de pós-punk e outras sonoridades mais extremas, me apresentavam a uma coleção de novas ideias que me entortavam cada vez mais, levando-me desde muito cedo a ter uma relação dúbia com o amor: de um lado, uma admiração extremamente romântica pelo desejo de vivenciar, plenamente, todas as possibilidades desse sentimento; do outro, uma desconfiança brutal perante o amor, visto como a mais torpe das fraquezas humanas e apenas um nome bonito para o que é puro instinto animal. Enfim, obsessão e repulsa juntos, de mãos dadas, e também caindo no soco, às vezes – quase sempre, na verdade (risos).
Monophono: O zine saiu com tiragem de 69 exemplares. A literatura também é uma experiência salivar?
Leandro: A literatura que não é salivar às vezes me dá um certo cansaço de ler. Sempre gostei dos autores passionais, que sangram, suam e vomitam quando escrevem. Quando você lê o John Fante, por exemplo: o negócio é tão cheio de VIDA, tão pleno, que você consegue quase SENTIR as batidas do coração do jovem Arturo Bandini, que pulsa entre contradições sentimentais, o conflito com o pai e com sua própria identidade. Até ler Fante, o arquétipo da literatura passional era o Bukowski, mas ele ficou completamente pálido após conhecer as histórias do Bandini. Outro autor cuja passionalidade me fez (faz) salivar foi Julio Cortázar, especialmente o “Histórias de Cronópios e Famas”, que já li tantas vezes e com a mesma ternura sempre (tenho certeza da existência objetiva dos cronópios, dos famas e dos esperanças, e de que eles muitas vezes encarnam nas pessoas, determinando seu comportamento). Também gosto, e muito, de escritores “cerebrais” (Borges, Lovecraft, Graciliano Ramos, Umberto Eco). Não que nesses artistas não exista emoção – há, e muita – mas me parece que os sentimentos que eles nos inspiram são mais fruto da construção literária do que de uma torrente sentimental autoral, de experiências cruas que transbordam salivantes para o leitor.
Monophono: Existe uma alusão visual aos antigos catecismos. É intencional?
Leandro: Não foi, mas fico feliz com a referência. A intenção mesmo foi usar imagens de filmes pornô e outros que fui roubando aqui e acolá, para construir um mapa imagético safado.
Monophono: “Ame ao extremo”, diz a contracapa do zine. O extremismo já não seria algo intrínseco ao sentimento? Como ir além?
Leandro: Nelson Rodrigues falou que “pouco amor não é amor”. Só o transbordamento o caracteriza – para o bem ou para o mal. Para o zelo completo que traz o conforto se transformar na posse controladora que mata, qual o limite? Ambos se justificam pelo amor, por mais que o senso comum em geral atribua a este último uma doença, algo que não pode ser chamado de amor, mas apenas de posse. Entramos no terreno das definições, mas elas são na maior parte das vezes irrelevantes. O que importa aqui é o sentido de exagero da frase de Nelson, que sempre me pareceu a melhor forma de definir o amor. Ao dizer “ame ao extremo” como fechamento do fanzine, eu quis dizer aos leitores: tomem como exemplo essas histórias lamentáveis para que você comece a amar com toda a coragem do seu ser. Deixe de lado os medos, deixe de lado as restrições, deixe de lado todas as suas incertezas. Você vai morrer. Você vai ficar velho. Você vai ficar cada vez mais isolado. Aproveite suas chances de fazer algo maravilhoso para que suas lembranças sejam povoadas com coisas bonitas. Acho que disse isso aos leitores – e também para mim, na verdade. Um puxão de orelha que dou no próprio Leandro (risos).
Monophono: Lembro de uma frase no “Soneto do Romance” do Life Is A Lie que dizia: “é humilhado que nosso romance caminha”. A possibilidade de uma relação a dois ser saudável é uma utopia?
Leandro: Não é uma utopia, mas como tudo na vida há ciclos. As situações mudam, as pessoas mudam. É uma construção e um construir-se. Nisso pode haver aproximações ainda mais intensas, com estabelecimento de cumplicidades fortíssimas, e também desenvolvimentos que levam a caminhos distintos e, por vezes, separações inevitáveis.
Monophono: A ideia monogâmica que você apresenta no editorial se une, em suas histórias, à onipresença do fim. Romances acabarem é uma consequência direta da monogamia como conceito?
Leandro: A monogamia tem sido bastante questionada num mundo onde o conceito de trisal aparece até no Fantástico; mas eu não acho que romances acabarem é uma consequência direta dela. Eu só tive relações monogâmicas até hoje, então isso acaba me influenciando na forma como escrevo. Todavia convivi por muitos anos com várias pessoas que tinham relações não-monogâmicas, e isso muito tempo antes de ser uma espécie de moda como me parece atualmente, e eram relações com laços muito fortes que me inspiraram bastante a ver as coisas sob um prisma mais gentil. A ausência de ciúme, por exemplo, de você ver seu amante com outro e não sentir-se traído: lembro que ao falar com esses meus amigos, sobre como eles lidaram com essa situação quando optaram por abrir a relação, eles me disseram que no começo obviamente sentiam todo o peso da programação social que os fazia sentir-se mal com tais situações, mas que buscaram entender o outro como um ser completo que poderia amar ALÉM deles, que tinha vontades e sentimentos que não se restringiam a apenas uma pessoa, e que esse entendimento do outro em sua totalidade foi importante na tarefa de impedir que o ciúme destruísse o amor. Por mais que eu nunca tenha embarcado em uma relação não-monogâmica, essas conversas me ajudaram muito a reavaliar o sentimento do ciúme e, também, a compreender as necessidades sentimentais de quem está comigo. Deixar livre o que precisa ser livre, e que fica ao seu lado porque gosta, porque se importa com você, e dar mais importância ao sentimento mútuo do que uma (muitas vezes) aparente falta dele.
Monophono: O fim de uma relação é ao mesmo tempo dor e possibilidade de renovação. Esse amálgama entre o luto e a esperança é o que nos faz fortes perante a experiência da vida?
Leandro: Nem todo fim significa renovação: alguns corações partidos jamais se recuperam. Eu espero nunca ser um deles. Mas acredito que a única fonte de força possível é justamente ser forte. Testar-se, puxar-se para cima, colocar diante de si uma pedra para empurrar de novo rumo ao topo da montanha. Não tem outra coisa a ser feita.
Monophono: Sobre seu outro fanzine, “Dissolve Coagula”, voltado à música e ao ocultismo: quando teremos em mãos a edição no. 2?
Leandro: O Dissolve Coagula eu encaro como um trabalho devocional, que tem sido alvo de minha principal atenção, fruto do meu envolvimento com práticas espirituais obscuras, isso desde seu número inaugural, lançado em 2018. O segundo já está com praticamente todos os textos prontos. Ainda terá a presença de conteúdo musical, especialmente black metal, mas nessa edição o leitor encontrará uma ênfase maior em ficção e ensaios, inclusive com participação de alguns colunistas. Serão cerca de 100 páginas de formato A4, e novamente teremos uma quantidade limitada de impressões.
Monophono: E projetos musicais? Lá se vai mais de década desde o fim do LIAL…
Leandro: Aposentei-me do rock, definitivamente. Sigo sendo um ouvinte aficionado, comprando CDs e discos, acompanhando com o mesmo grau de interesse o surgimento de novas bandas, e ouvindo apaixonadamente as formações que sempre me inspiraram – e isso me basta.
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