Continuação da entrevista com o guitarrista/vocalista Carlos Lopes, líder da Dorsal Atlântica e criador do álbum “Pandemia” – aqui falamos de temas que a sabedoria popular diz para não se discutir, mas que discutimos mesmo assim, como política e religião, e de outros assuntos bem menos proibitivos, como literatura e história. Ao papo!
Monophono: A metáfora já é parte constante do seu trabalho (Searching For The Light, Alea Jacta Est), porém a sátira me parece uma novidade – ao menos assim, tão escancaradamente corrosiva. O momento pede por essa abordagem?
Carlos Lopes: Hoje mesmo, li um depoimento do pastor Henrique Vieira, que participou do filme “Marighella”, falando sobre louvarmos o Cristo negro – o mesmo Cristo que citei no “Alea Jacta Est”, na metade da década de 1990; o mesmo Cristo que a escola de Samba de Mangueira levou à passarela em 2020. A sátira, dessa forma mais contundente, é resultado dos anos de Mustang e Usina. Na primeira banda eu tocava com uma camiseta vermelha, comunista, estampada com a caveira do Bope (risos)! Vesti espartilho, roupa feminina baby look, saltos altos, lantejoulas, pintei os lábios. Sou artista, e não macho ou fêmea.
Monophono: Jonathan Swift, um dos maiores satiristas que já pisaram nesse planeta, disse que é gênero é “um espelho no qual quem observa descobre o rosto de todos, menos o seu”. A sátira, no fundo, é a forma mais triste de se fazer comédia?
Carlos Lopes: Humor é importante, claro; mas algumas pessoas se referem a minorias e assuntos sensíveis com consentidos deboche e preconceito. Isso poderia ser sátira? Sátiro era um ser meio humano/meio bode, cujo propósito era dar uma chacoalhada em tudo, ou, no melhor dos casos, trazer mudança. A chanchada brasileira, um estilo do cinema muito popular na década de 1950, fazia troça sobre situações de época. Era um gênero de fácil entendimento, mas que nunca pretendeu mudar nada – puro passatempo, apesar de contar com grandes artistas. E o que mudou daquele mundo para a atualidade, em que as pessoas se educam e se divertem com Tiktokers? Se dá lucro, para quê pensar, não é mesmo? A chanchada seria quase a mesma coisa que afirmar que somos uma nação-comédia, e que, como povo, não levamos nada a sério. E assim, sem comprometimento com o humanismo e a humanidade, sempre seremos incapazes de nos gerir, e, por isso mesmo, imaturos, infantis. Engana-se, quem acredita que o rock é um estilo antissistema, inteligente ou combatente: 90% não é! Mesmo as bandas underground, black metal, hardcore, o que seja, são conservadoras, porque não conseguem (e nem querem) se refutar ou refutar o entorno como o que verdadeiramente é: alienado.
Monophono: Já que falamos de literatura, “Revolução dos Bichos”, também ele uma sátira, foi uma referência? Situações extremas animalizam além da conta o ser humano? A parábola não é tão parábola assim?
Lopes: Sim, principalmente seus livros mais conhecidos, incluindo o “1984”. Incrível, mas Orwell parece a Clarice Lispector, os reis das citações e pensamentos – estão entre os mais aludidos e menos lidos! Um detalhe importante a ser dito sobre essa questão é como os bozonazistas (e o “pastor” Olavo) têm se apropriado da obra do autor, distorcendo fatos e reimaginando os acontecimentos. Orwell lutou na Guerra Civil Espanhola contra os nazistas! Se escreveu contra os totalitarismos, o fez contra todos, não somente contra Stalin (inclusive há uma tradução recente de “Fazenda dos Animais”, não mais feita por um militar anticomunista). As pessoas podem mudar de opinião ao longo da vida, mas isso é diferente de tirar uma ideia de um contexto e tentar reexplicá-la para alcançar outros objetivos. Monteiro Lobato virou stalinista no final da vida, e Marighella quase morreu quando os crimes de Stalin foram denunciados; Paulo Francis, assim como o Mainardi e o pessoal da Libelu, se tornaram direitistas… Veja o caso do Geraldo Vandré, que se tornou um radical de direita – e hoje os direitistas aproveitam, cantam “Caminhando”, reescrevem a história.
Monophono: Li em uma entrevista que o Pandemia foi uma indicação espiritual que você recebeu. A arte em si, a inspiração e a posterior criação, já não são em si mesmos uma espécie de psicografia?
Lopes: Trabalhei durante décadas em centros espíritas e fraternidades. Alguns podem não acreditar nessas atividades, tanto faz, também tive e ainda tenho dúvidas, mas preferi fazer algo, e não impus nada, nem que seguissem religiões. Prefiro chamar psicografia de “brasilidade”. Não há como viver sonhando sem concretizar os sonhos e não ficamos frustrados, amargurados. A não ser que esse não seja seu fardo… Mas, além dos rótulos, é sabido que os mundos interagem, consciente e inconsciente, vamos colocar dessa forma. Acreditamos no que queremos, no que é mais confortável. Se entidades me induziram, me “escolheram”, devem ter selecionado o “cavalo” que poderia cumprir a missão. Para tecer um paralelo: o programa Alienígenas do Passado, do canal History, é um festival de parcialidades e deturpações, bem ao gosto dos conspiradores, no mesmo nível da “obra” Guia Politicamente Incorreto. Costumava assistir ao History nos anos 1990, mas os documentários perderam espaço para os realities. O canal, além de louvar todo o culto estadunidense às fortunas (quem dá mais, quem ganha mais, etc) e a hambúrgueres, fala além da conta em nazistas e ETs.
Monophono: Assumir frontalmente uma postura de esquerda gera retaliações a você? Lidar com essas reações contrárias assusta, ou faz parte do ônus de se posicionar?
Lopes: Quando você sabe quem é, não dói – dói em quem não se conhece, ou em quem tem medo de expor o que acha. Por isso, apesar dos pesares, acho este período bozonarista uma grande lição para todos nós. Agora sim conhecemos nossos amigos, parentes e amores. Ingratidões, puxadas de tapete, traições e incompreensões fazem parte da trajetória humana. Um dos últimos filmes que assisti no Rio, alguns anos antes de me mudar para Brasília, tem uma história curiosa… Era um cinema de arte, em Botafogo. Deveria ter 15 ou 20 “testemunhas”. Quando a sessão terminou, e as luzes se acenderam, senti aquele clima de fascismo no ar, de gente que se calava, mas que gostava de um Hitler… Virei para a plateia e gritei “Fascistas não passarão!”. Uma espectadora, logo atrás de mim, ficou enlouquecida e começou a esbravejar, defendendo o que antes não queria expressar. Vi fogo em seus olhos; estava nitidamente engatilhada. Se não tivesse se exaltado comigo, teria ofendido outro alguém dali a instantes. Bozo foi eleito anos depois, antes houve a operação Lava-Jato em conluio com os estadunidenses… Mas exemplos como esse do cinema carioca ocorreram também depois do filme “Tropa de Elite” de 2007. O golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff aconteceu em 2016. É uma construção, não aconteceu do nada… Tudo o que vem ocorrendo fala mais a respeito do povo, do país, do que sobre o próprio Bozo, que é apenas um boneco de ventríloquo.
Monophono: Uma de suas metas sempre foi a de gerir tudo relacionado a seu trabalho. É uma realidade hoje? O quanto de controle em relação à sua obra (atual e pregressa) você conseguiu adquirir?
Lopes: Se você tem os meios (leia-se “grana”), há como gerir o trabalho sem interferências, mas esse nunca foi o meu caso. Todo desafio é bom, forma caráter. Não é de fato ruim conviver com todo tipo de gente durante uma trajetória artística, mas a maioria desse povo é humanamente prejudicial, e rejeita obras que conscientizem e que gerem pouco lucro. Sempre administrei essas situações, os altos e baixos, da forma que dá; mas, verdade seja dita, meus projetos, incluindo a própria Dorsal, nunca foram viáveis para a indústria. Administrar uma banda, ainda mais uma que não se paga, é difícil, mas é compreensível que seja assim. Pouco há o que fazer para mudar essa situação, a não ser que você abra as pernas e se corrompa… Os músicos, agentes, donos de selos, são pessoas diferentes, e só se agrupam em um projeto se este atender a interesses particulares, a maior parte baseados em poder. Os meus objetivos sempre foram políticos, educacionais e estéticos, e isso têm pouco a ver com sexo, drogas e rock’n’roll – ou em se tornar famosidade.
Monophono: Em relação a formatos: Pandemia já saiu em CD – teremos versão em vinil? O quão Carlos Lopes é entusiasta dos bolachões? O colecionador de álbuns ainda sobrevive em você?
Lopes: Tenho quase 60 anos e cresci com os vinis, mas eles se tornaram peças de colecionador. Sim, haverá uma versão do Pandemia em LP – mas, como se sabe, em 2021 as fábricas pararam de prensar por falta de insumos, e afirmam não conseguirem entregar os produtos antes do final do ano de 2022! É incrível, mas hoje é mais fácil fabricar cassetes e CDs do que discos de vinil.
Monophono: Qual será o legado mais perene que o período pandêmico nos legará, na sua opinião? Será social, político, histórico ou médico/sanitário?
Lopes: Melhor perguntando: o que a arte e a estética, como no álbum Pandemia, podem deixar de legado para mudar para melhor o país e conscientizar os brasileiros? Pouco, sinto dizer; mas fiz minha parte, e as pessoas que apoiaram o projeto também fizeram a delas. E por que digo que foi (e é) insuficiente? Porque Bozo não se sente responsável por morte alguma. Ele está convicto disso. Ri, debocha, faz pouco caso, mente. Os 57 milhões que o apoiaram, e os outros milhões que lavaram as mãos e preferiram ver o circo pegar fogo, só se retraíram um pouco por conta da pandemia. Se não houvesse essa virada do destino, Bozo teria dado o golpe dele e instituído um regime nazista no país. E centenas de metaleiros e punks ainda o apoiam. Isso não sou eu quem diz: basta recorrer a fontes idôneas, aos seus próprios discursos, aos de seus adeptos. As pessoas esquecerão esse período pandêmico rapidamente, como se nunca tivesse acontecido, assim como, mesmo após a destruição causada pelas grandes potências na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, ainda existem fascistas e nazistas no mundo… E, em especial, em um país caboclo chamado Brasil – nação essa que aceita ser colônia e que se recusa a olhar a sua cor miscigenada no espelho.
Confira a parte 1 dessa entrevista clicando aqui.
Videoclipe de Pandemia
Cover do Ação Direta para Caçador da Noite