Fellipe José Sallis de Sant’Anna, o popular Fellipe “Cara de Cachorro” CDC, é, por princípio, um personagem singular dos nossos subterrâneos (anti-)musicais: não se diferencia, nele, o cantor e o febril aficionado. Desenvolver uma carreira à frente de bandas como Death Slam e Terror Revolucionário é consequência direta de seu fanatismo frente a tudo o que já foi feito de mais nobre no som pesado nacional, e, por conseguinte, tanto sua disposição inacabável pra fazer barulho quanto seu ativismo em diversas frentes há muito enriquecem nosso underground em interesse e entusiasmo. Chegou, portanto, a hora de dar voz a ambos, artista e fã, desta feita no mercado editorial: o livro colaborativo “86 Histórias Sobre Discos Brasileiros” é produto de quem fundamentalmente vive/respira o ruído de nossos porões, elaborado por pessoas que sabem que somente se envolve de verdade com som pesado quem possua profundo respeito pelo trabalho dos outros (e entenda que essa reverência, quando transportada para além dos discos, molda caráteres e transforma vidas). CDC tirou um tempinho para contar um monte ao Monophono a respeito da obra – vamos ao papo, então!
Monophono: Comecemos com uma pergunta direta e reta: qual é, em sua opinião, Fellipe CDC, o mais importante disco já lançado no Brasil?
Fellipe CDC: Vou te confessar uma coisa: quando convidava algumas das pessoas que participaram do livro (trata-se de um trabalho intelectual coletivo!), pedia para que me mandassem uma lista particular dos 4, 5 discos brasileiros que mais gostavam. A resposta, quase unânime: “Porra, só cinco!”. E eu dizia: “Sim – e calma, que pode ficar pior!” (risos). Quando a pessoa mandava a relação dela, eu apertava uma estaca em seu coração e solicitava: “Agora escolha apenas dois desses álbuns e escreva sobre eles!”. Muito macabro isso, né (risos)? Agora vem você e manda eu escolher um, apenas um! Isso sim é requinte de crueldade! Bom, não fugirei dessa pergunta: “Antes do Fim”, da Dorsal Atlântica.
Monophono: Você é um cara desde sempre envolvido com a publicação de zines. É sua primeira incursão no mercado editorial de fato? É um desejo antigo, ou a ideia tomou forma apenas recentemente?
CDC: E eu nem queria ter entrado nesse campo, o qual desconheço totalmente. Acontece que tive a ideia do livro, e falei com meu amigo Denis, da Denfire Editora, que ficou entusiasmado com a possibilidade de lançar a publicação. Disse que arrumaria 101 pessoas para escrever sobre 101 discos brasileiros, e a primeira coisa que ele me disse foi: “muita gente para reunir e ficar cobrando. Para viabilizar, reduza esse número”. Fiz o que foi pedido, e comecei a juntar uma galera amiga. Como tinha pronta a lista dos 101 nomes, só tive que ir fazendo os convites. À medida que o material começou a chegar em minhas mãos, o Denis refez as contas e viu que, com o valor que a Denfire tinha em caixa, não seria inteligente trabalhar em um livro tão arriscado quanto o 86 Histórias.., visto que a editora também tinha outros lançamentos programados. Compreendi totalmente o posicionamento dele. Daí, como já tinham chegado alguns textos, fiquei sem graça de avisar pro pessoal que o projeto havia naufragado. Já perdi muita grana em produções de shows, tirando fotocópias de fanzines vários ou mesmo gravando/tocando com minhas bandas, portanto cheguei a uma brilhante conclusão: lá vou eu tomar prejuízo outra vez, só que agora no campo da publicação de livros (risos)! Importante frisar: a Denfire Editora me ajudou e ajuda com vários assuntos ligados ao “86 Histórias Sobre Discos Brasileiros”.
Monophono: Obviamente que editar um livro é processo absolutamente diferente do de uma revista independente. Como foi/tem sido a experiência, em relação a tudo que envolve sua feitura/divulgação?
CDC: Tenho a sorte de ter muito(a)s amigo(a)s e, nesse meu núcleo de amizades, várias pessoas detêm conhecimentos em diversas áreas: diagramação, design, ilustração, biblioteconomia, editoração, etc. Eu me agarrei a eles com unhas e dentes! O processo integral do livro foi feito por gente ligada de alguma forma ao movimento underground. A grande maçonaria do submundo da arte (risos)! Todas as dúvidas que eu tinha – e eram (são!) muitas – pedia ajuda a esse grupo. É como diz a canção do Balão Mágico: “Ter um amigo, a gente precisa de amigo…” (risos). Essa turma foi de fundamental importância para a feitura e a conclusão do “86 Histórias Sobre Discos Brasileiros”.
Monophono: Existiu algum texto em especial que o instigou a dar conta desse projeto? Algo que você leu em revistas, jornais ou páginas de Internet e pensou “caramba, poderíamos ter um livro todo assim”?
CDC: Não – e foi exatamente por isso que pintou a ideia! Sou daqueles que precisa estar sempre em atividade, sempre produzindo alguma coisa para não ficar pensando merda. Estrago três bandas (Death Slam, Terror Revolucionário e Caligo) com minha voz horrorosa, organizo shows, ajudo outros eventos, entrego panfletos, etc, etc, e essa maldita pandemia me deu um choque paralisante. Como tive que ficar mais em casa, recluso, sem poder frequentar apresentações, salas de cinemas ou mesmo ensaiar, comecei a ler muito mais (99% das leituras ligadas ao Metal, ao Punk, ao Rock’n’roll) – foi aí que descobri essa lacuna, e apresentei a ideia à Denfire (editora da qual sou cliente assíduo!). Temos um verdadeiro arsenal de guerra, excelentes discos lançados por bandas e gravadoras de vários estados brasileiros, e isso precisava ser registrado. Depois que o livro viu a luz do dia, recebi um Whatsapp de um camarada que havia feito algo semelhante, só que com fitas demonstrativas (as maravilhosas demos!), e ele fotocopiou os depoimentos – ou seja, fez um belo de um zine! Uma ideia esplêndida. Perguntei para ele o preço, pois queria adquirir um exemplar, mas o cara falou que estava de mudança e que, quando tivesse tempo, me informaria detalhes. Acho que ele se mudou para longe e foi a pé, pois conversamos mais ou menos na segunda quinzena do ano de 2022 (risos).
Monophono: Os textos presentes são todos inéditos?
CDC: Sim! Absolutamente inéditos. Inclusive, muitas das pessoas convidadas nunca haviam escrito para nenhum fanzine, revista ou jornal.
Monophono: Qual critério utilizado pra selecionar essa galera presente no livro? Você escolheu o colaborador e passou os discos a eles, ou o próprio teve liberdade para optar sobre qual obra iria discorrer?
CDC: Primeiro listei 101 pessoas, depois tive que reduzir o número de colaboradores para 43. No ato do convite, pedia para a pessoa listar 4, 5 discos brasileiros que mais gostava, já temendo que haveria choques em muitos deles. Dos álbuns selecionados, o colaborador poderia optar por dois que estivessem livres. A pessoa tinha total liberdade para escolher o que queria escrever, desde que fossem discos de bandas brasileiras e que estivessem dentro da órbita Metal, Punk ou Hardcore.
Monophono: Gravadoras são normalmente demonizadas, porém uma Cogumelo, por exemplo, carrega consigo um catálogo de suma importância para o metal mundial. É hora de reconhecer a real importância delas?
CDC: A Cogumelo tem uma história fascinante, né? Tanto que já ganhou até alguns documentários (recomendo que os vejam no YouTube). Junto a ela, podemos apontar também a Devil Discos, a Baratos Afins, Ataque Frontal, Rotthenness, Heavy, Dies Irae, Kill Again, Rock Brigade, Heavy Metal Rock, Woodstock… Enfim, tantas outras que ajudam a embalar festas e encontros e também a escrever a nossa história enquanto ativistas culturais.
Monophono: Temos um bom número de coletâneas na listagem. Elas foram essenciais para o desenvolvimento do nosso underground?
CDC: Foram, são e serão! Muitas bandas, antes de lançarem seus debuts, participaram de coletâneas. E foram milhares – (John) Zazulla que o diga…
Monophono: Brasília se faz presente com DFC, Valhalla, P.U.S., Miasthenia, Bulimia… A mística de “cidade musical” se faz valer também no som pesado?
CDC: Certamente! Tratar da cidade apenas a partir da tríade Legião/Plebe/Capital (alguns ainda lembram de acrescentar os Raimundos) é um terrível e lamentável engano. Há muito mais em Brasília do que a própria Brasília – por exemplo: o festival de rock mais antigo em atividade no Brasil é da Ceilândia (cidade histórica e afastada do centro do poder!) e é chamado FERROCK, só para abrir um pequeno parêntese. O Distrito Federal e seu entorno sempre produziu, e continuará a produzir, excelentes bandas de metal, de punk, de hardcore, de rock’n’roll. Costumo defender a cena candanga não por uma questão de bairrismo ou algo assim, mas para tentar corrigir o que a grande mídia gosta de enfatizar.
Monophono: Algumas bandas que fizeram barulho lá pelos anos 90 (BSB-H, Porrada!, Scarlet Sky, Anões de Jardim, F.D.S., entre tantas) não resistiram ao teste do tempo? Ou encontrariam espaço independente da época?
CDC: O BSB-H ensaiou uma volta; pena que não deu certo (salvo engano, aconteceu algo semelhante à F.D.S do eterno ogro Borella). Felizmente, as bandas que você citou ainda deixaram registros em vinil e/ou CD, ao contrário de milhares de outras que nem demos conseguiram deixar. Acontecem casos assim aos montes (e no mundo todo!). Acho que esses nomes encerraram atividades devido a diferentes fatores, porém, acredito que as muitas responsabilidades adquiridas com a fase adulta da vida foram as principais vilãs desses sonhos juvenis. As canções que fizeram são atemporais, contudo; sempre terão espaço, independente da época, exatamente pelo fato do nosso rock podre e sujo não ser uma música de moda. O heavy não morreu! O punk não morreu! Sempre haverá uma mina ou um cara tocando uma guitarra, ou uma mina ou um cara berrando contra o sistema!
Monophono: Os “86” não me parecem escolhidos aleatoriamente… 1986 foi um ano determinante para o punk/metal brasileiro?
CDC: Para o metal mundial! Veja a quantidade de excelentes discos que foram lançados neste ano de 1986. E eu não sou adepto da numerologia – são apenas fatos!
Monophono: O que mais doeu na alma deixar de fora?
CDC: Aquela história de “entrou até os ovos!” é uma mentira brutal! Nunca dá para entrar tudo, sempre vai ficar algum pedaço de fora (risos). Sou um apreciador, um amante do cenário underground brasileiro há muitos e muitos anos (cabe até colocar mais outro ‘muitos’ aí para acentuar a idade) e, na minha visão, dava para escrever uma cacetada de livros desses… Vários discos que eu amo, vários mesmo, ficaram de fora, mas, como cada colaborador escolhia o seu vinil com total liberdade (desde que os long plays estivessem livres para pesca) eu não podia ficar fazendo lobby por um ou outro LP específico – apesar de ter tentado e falhado miseravelmente (risos)!
Monophono: A crescente melhoria, com o passar do tempo, de equipamentos, estúdios e o acesso a conhecimento (tanto técnico quanto artístico/histórico), acrescentou ou subtraiu em fascínio à cena brasileira? Romantismo ou profissionalismo: qual prevalece, no fim das contas?
CDC: Eu sempre fui movido a paixão, e no livro o que impera é o amor (brega para caralho isso, né?). Logo, no caso do “86 Histórias Sobre Discos Brasileiros”, o romantismo deu uma bela goleada no profissionalismo, tipo 7 a 1. Alguém lembra aí do 7 a 1?
Monophono: Existe ideia para uma segunda parte? Ou ainda é cedo para pensarmos nisso?
CDC: Muitos discos ficaram de fora desse primeiro volume e, repetindo, tem uns LPs que, puta que pariu, não podiam jamais ter sido excluídos. Mais histórias precisam ser contadas…
Para adquirir sua cópia, entre em contato com o CDC, via email (fellipecdc@gmail.com) ou Whatsapp (61 98837-3463).