Quem monta uma banda disposto a investir em material próprio precisa ter alguns objetivos em mente. O cenário ideal, que poucos conseguem atingir, englobaria principalmente três aspectos: obter boa quantidade de shows, produzir com constância e, importantíssimo, adicionar suficiente personalidade às criações, o que por si só não garante sobrevida, mas coloca as cartas na mesa sobre a real intenção de um trabalho. O trio santista Surra se deu bem em todos os itens citados: com agenda de apresentações constantemente repleta e desde sempre editando material em ritmo frenético, o grupo agora chega ao terceiro disco completo, “Falha Crítica”, no qual embrutece a olhos vistos suas características mais marcantes – se resultado único e exclusivo de uma necessidade criativa ou de fazer o necessário combate ao ideário da extrema-direita que nos cerca cotidianamente tomar forma musical, o importante é ver os caras encamparem com voracidade que radicalização é sim (r)evolução. O baterista Victor Miranda concedeu entrevista exclusiva ao Monophono para contar mais a respeito do belíssimo momento vivido pelo conjunto, em contraste ao horror que toma conta do planeta.
Monophono: Percebe-se que, mesmo que conte com boa exposição para uma banda underground, o Surra não tem intenção de transformar seu som – pelo contrário, pois Falha Crítica mostra a banda mais radical do que nunca dentro de seus propósitos. A integridade é um bem inegociável?
Victor Miranda: Com certeza! Ainda mais considerando que um dos principais propósitos de a gente fazer um som juntos é poder externar esse tipo de questão, que nos incomoda muito em um nível pessoal; então, não teria razão para “suavizar” um discurso, sendo que vivemos uma época verdadeiramente apocalíptica.
Monophono: Falando nisso, vejo o Surra com totais possibilidades de chegar ao mainstream, sem precisar abrir mão de nada que o caracteriza. Vocês pensam nesse tipo de coisa? Um público mais amplo seria um bem ou um mal?
Victor: Permita-me discordar (risos). Eu acho que existe perto de zero chances do Surra atingir um dito “mainstream”. O discurso incomoda, o som é extremo, não há um grande investimento… Seria bacana ter um público maior de olho no que a gente toca, mas não fazemos nada com isso em mente. Se, por um acaso e sorte absurdos conseguirmos algo fora da nossa bolha, muito legal – mas temos consciência de que isso é muito difícil de acontecer.
Monophono: Ainda sobre esse assunto: o período Bolsonarista ajudou o Surra a “endurecer” sua música? Tempos sombrios requerem arte cada vez mais radical?
Victor: Acho que não só o Bolsonarismo: se você olhar o contexto internacional, estamos vivendo épocas de muitas convulsões políticas mundo afora. Logo, com tantas situações pipocando simultaneamente, é inevitável que nossas músicas espelhem isso, e que não só a gente seja influenciado pelo clima dos nossos tempos, mas todo um cenário também. Penso que não é obrigação de ninguém refletir isso na arte, mas é uma consequência natural de tudo o que acontece.
Monophono: Como um grupo abertamente de esquerda ainda vê os rescaldos da passagem de Bolsonaro pelo poder? A permanência das “ideias” do ex-presidente em boa parte da população, mesmo depois da derrota, ainda vai render muito assunto pra vocês?
Victor: Acredito que o principal entendimento é de que a questão não é o Bolsonaro. Sim, ele é uma figura escatológica e horrível da política brasileira, mas o verdadeiro absurdo é esse clima de extrema-direita que se instalou no país. Se não for o Bolsonaro, o que não faltam são outros palhaços malignos dispostos a assumir esse papel. O grande problema é a burguesia e o próprio imperialismo. O Bolsonaro é um piolho comparado com o dono do Itaú, por exemplo. Essa é a gente que manda de verdade; esses “líderes” fascistas são somente os testas-de-ferro do esquema. E sim: pelo andar da carruagem, infelizmente ainda teremos muito assunto nesse sentido, a ver o tal do Pablo Marçal e outros tipinhos escrotos que não param de aparecer em nosso cenário político.
Monophono: A banda sempre capricha nas produções visuais, e dessa vez não foi diferente: todo o conceito da arte de Falha Crítica gira em torno das antigas revistas de videogame. O mundo “tiltou”? Conte-nos mais sobre.
Victor: A ideia é trazer elementos visuais que remetem a coisas que fizeram bastante parte da nossa vida, trazendo uma mensagem política metafórica por trás. Toda a concepção do Falha Crítica é justamente essa. Estamos vivendo um período de crise aguda do capitalismo. Se ele fosse uma pessoa, já estaria na UTI ligado a diversos aparelhos, e vários problemas sobre os quais falamos decorrem disso.
Monophono: O Surra produz incessantemente desde o início. O que gera essa facilidade para escrever material? Existe alguma disciplina por parte dos três em relação à composição, ou a banda é realmente esse canal que, sozinha, potencializa a criatividade de vocês?
Victor: Acho que é uma mistura de muitas referências, coisas que a gente consome e conversa sobre, e também de trabalho duro. No “Falha Crítica” resgatamos composições que estavam na gaveta há mais de 5 anos! Não temos nenhuma disciplina específica não, até porque hoje em dia dispomos de uma quantidade muito limitada de tempo para dedicarmos à banda – mas, quando nos juntamos, é sempre uma explosão de criatividade.
Monophono: A gravadora Laja tornou-se a parceira ideal do Surra já há algum tempo. Mozine era uma referência pra vocês desde antes do acerto? E a Cadeia Records, é o selo da própria banda? Como funciona essa co-participação?
Victor: O Mukeka di Rato é uma grande referência pra gente, algo que víamos até com certa distância… Hoje em dia, poder trabalhar diretamente com o Mozine é legal demais. A Cadeia é nosso selo sim, e vamos dividindo com a Läjä todos os nossos lançamentos. É o jeito que dá para fazer as coisas em nosso meio underground.
Monophono: Quantas tours na Europa já na conta? Cantar em português para gente que não conhece o idioma, é uma sensação especial?
Victor: Foram duas turnês, uma em 2016 e outra em 2018. Acho que acaba ficando mais interessante para os gringos uma banda que cria coisas em seu idioma nativo, e também insere outros elementos da cultura do próprio país, do que as que ficam “emulando” um som, uma estética e uma cultura que vem de fora.
Monophono: Como é a banda fora dos palcos? Vocês trabalham diretamente com música ou possuem empregos “convencionais”, digamos assim? Como fazer para equacionar as prioridades, com uma banda tão atarefada quanto o Surra?
Victor: Eu e o Leo (Mesquita, guitarra/vocal) até trabalhamos com música, mas nada a ver com o Surra. Temos empregos “convencionais” sim, pois banda underground não sustenta a vida de ninguém, ainda mais com responsabilidades como filhos, por exemplo. Acho que tudo é um equilíbrio. Temos que ter uma noção realista do que é possível fazer, do que pode ser deixado para depois e do que não pode ser feito, e saber lidar com essa situação. Como o grupo não vai financeiramente resolver a vida de ninguém, é algo que fazemos porque gostamos mesmo e queremos colocar em prática – mas isso também implica em, às vezes, abrir mão de certas coisas.
Monophono: Pra finalizar, uma questão muito cara ao Monophono: Falha Crítica será lançado em vinil? Quais as previsões?
Victor: Estamos tentando! Acho que no fim deste ano iremos fazer uma prensagem limitada, dentro das nossas possibilidades.