Gostava de Shelter. “Here We Go Again” fez um baita sucesso, Ray Cappo e Porcell tinham o pedigree do bacana Youth of Today, e a ideia positivista de seu som era sem dúvida um atrativo. Comprei dois álbuns no final da adolescência: “Mantra”, responsável pelo megahit acima citado, e “Beyond Planet Earth”, de evidente inclinação comercial e que atirava para todos os lados (tinha até um ska, a constrangedora “Alone In My Birthday”). Certo dia, minha turma de amigos de São Bernardo do Campo saía de uma mostra de cinema no Paço Municipal da cidade, quando um camarada me entregou um CD sacado do bolso de sua jaqueta – mostrei-me pouco receptivo a princípio, mas sua convicção de que aquilo faria minha cabeça me motivou a dar uma chance àquela banda por mim desconhecida. Chamavam-se Cripple Bastards; o álbum em questão, “Misantropo a Senso Unico”, havia sido lançado no Brasil pela Pecúlio Discos do baterista Boka, do Ratos de Porão; e mal sabia eu que tinha em mãos um dos momentos mais gigantescos de um negocinho ruidoso chamado grindcore – e que, ao colocá-lo pra rodar, descobriria de vez o extremismo musical, para dali nunca mais arredar pé. Tempos depois, ele, que estava com os dois Shelter citados acima, me propôs trocá-los pelo do CB. Topei na hora, claro.
Estamos falando aqui de algo absolutamente específico, de uma revolução particular dentro de um estilo maldito e anti-comercial, de algo feito para ser o total oposto de “disco de enciclopédia”, de uma obra que sustenta ser o ódio a única forma de lucidez. Mas, antes, uma contextualização histórica se faz necessária. A primeira real transformação que o grindcore sofreu em sua existência aconteceu em 1998: “Inhale/Exhale” do Nasum. Estilo criado nos anos 80 na Inglaterra, o Napalm Death como seu maior propagador e circundado por nomes como Heresy, Deviated Instinct e o Carcass dos primórdios, o grind surgiu como a natural transformação que o punk rock sofreu no correr daqueles tempos: se o levante de 77 originou o hardcore, o Discharge e o d-beat e os viu tornarem-se cada vez mais agressivos, não demoraria a que os mesmos britânicos criassem a anti-música total e a transformassem em modo de vida. O trio sueco, por sua vez, trouxe ingredientes diferentes ao som que aquele bando de squateiros ingleses havia (di)lapidado: afinações baixas, blastbeats entremeados por fartas doses de groove, produção detalhista, bonezinhos e bermudões. Um som primordialmente de estúdio, que de forma quase instantânea cristalizou o que seria o grind “moderno”, colocou muitos de joelhos e alguns a cultivar dúvidas e ceticismo, e fez do grupo referência maniqueísta de “certo” e “errado” dentro do gênero. Misantropo… apareceu dois anos depois, como uma reação ao alvoroço provocada pelos escandinavos – e o conceito de “violência sonora” se viu definitivamente transformado.
Pra começar, era necessário mostrar que o grindcore deve ser essencialmente contrário à plastificação sonora que o Nasum encampava: assim como os precursores ingleses fizeram nos anos 80, o Cripple Bastards preferiu lançar mão de uma produção bruta e sem lapidações, em busca de um resultado que demole simulacros, e que encara como vital entender o grind como uma solução em si mesmo – ou seja: aqui não se cria algo definitivo por “expandir” o estilo ao retrabalhar seus códigos, mas sim por encarar essas mesmas convenções como um axioma, plenamente funcionais como meio de expressão e cujo efeito torna-se ainda mais radical quando convicção e autenticidade trabalham unificadas. Confirma-se, ainda, que a forma de se expor seus pontos de vista é também um posicionamento moral: colocar uns groovezinhos e baixar afinações é rigorosamente um insulto estético a tudo o que Giulio the Bastard, vocalista e mentor do CB, prega desde o início de sua carreira. Se poucas vezes um álbum alcançou tamanha ferocidade (dentro do próprio grind é difícil encontrar algo que sequer o circunde), é exatamente por sua música ser a exata contraparte do horror existencial que suas letras vomitam. Tal vínculo entre intenção e expressão é difícil, porém aqui a fúria precisa ser incondicional e desenfreado – e o feito maior de “Misantropo a Senso Unico” é esse: a coesão entre fidelidade conceitual e execução formal é absoluta, para assim gerar um monstro que redefine o grindcore a partir do que ele sempre foi.
E credito muito dos resultados aqui obtidos a um sujeito: o baterista Walter Dr. Tomas. O trampo do cara é assombroso. Se Giulio constrói, em sua temática desesperada e com todos os registros de vocalizações extremas possíveis e existentes, um mundo sem saídas e cujas únicas válvulas de escape possíveis são a perplexidade e o isolamento, os tambores desse maníaco fazem as vezes da artilharia ininterrupta que o cantor precisa para complementar sua guerra contra a existência. Nada escapa da sua bestialidade rítmica: de sonoridade rústica e pegada paleolítica, a hiperatividade de suas levadas empresta a petardos como “Il Sentimento Non É Amore”, “Morte da Tossico” e “La Repulsione Negli Occhi” os ímpetos de rolo-compressor antissocial que elas nasceram para ter. Sua saída, assim como a do guitarrista e fundador Alberto the Cripple, é anunciada no encarte do próprio álbum – e, sem os dois, o Cripple Bastards partiu para rumos mais profissionais. “Misantropo a Senso Unico” era radical demais para não deixar sequelas – e ainda hoje, vinte anos depois, é a supuração musical suprema das feridas do mundo.
Uma edição especial do álbum “Misantropo a Senso Unico” em comemoração ao aniversário de 20 anos foi lançada esse ano, contendo um disco em vinil 12″ colorido com nova capa gatefold e encarte com letras e imagens de horror estilo anos 70, CD, poster e um EP em vinil 7″ com faixas bônus. Para garantir o seu clique aqui.
Confira o álbum na íntegra logo abaixo:
Cripple Bastards ao vivo no Recife