Basicamente, a Batalha da Matrix é uma batalha de mc’s que acontece desde o dia 7 de maio de 2013, todas as terças-feiras, às 19h30, na Praça da Igreja Matriz, Centro de São Bernardo do Campo. Porém, o que acontece na verdade, vai muito além do que uma simples batalha, é a ocupação do espaço público por jovens que fomentam a cultura hip-hop em uma cidade – para não dizer um país – que nega acesso a juventude e que não admite nada diferente da tradicional cultura eurocêntrica. Uma praça que movimenta cerca de 800 jovens todas as noites de terça, no Centro da cidade, é uma afronta ao poder público e ao status-quo da classe média/alta. Esses jovens conseguem, de maneira independente, se virar para que a batalha vire um mega evento, trazendo na praça rappers de destaque na cena nacional. Cris SNJ, Yzalú, Stefanie, Ordem Natural, Max B.O, Thaíde, Dexter e Emicida, são alguns desses artistas renomados que já subiram no banco da Matrix. Aliás, um dos eventos mais importantes promovidos pela S.A.C (Sociedade Alternativa de Campom, que são os organizadores da Batalha da Matrix), chama-se Festival de Resistência da Matrix, que ocorre sempre no mês de novembro, única vez que a terça abre espaço para o domingo, onde o dia inteiro, não apenas shows e batalhas de mc’s, mas também Sarau, Circo, Capoeira e diversas outras expressões artísticas e populares da nossa Cultura se juntam na Praça da Matriz.
Além disso, a Batalha da Matrix promove diversas ações sociais, como arrecadação e distribuição de cestas básicas, absorventes para mulheres encarceradas, sopão para pessoas em situação de rua, campanhas do agasalho, rodas de conversas com psicólogas, etc. E nesta pandemia também fizeram a distribuição de máscaras em algumas comunidades de São Bernardo do Campo.
Outro detalhe importante é que em 2018 a Batalha da Matrix invadiu a Universidade de São Paulo. O mestre e sociólogo, Felipe Oliveira Campos, mais conhecido como Felipe Choco, desenvolveu a tese de mestrado, “Cultura, Espaço e Política: Um estudo sobre a Batalha da Matrix de São Bernardo do Campo”, onde ele faz uma correlação histórica da evolução da cultura hip-hop, com a luta dos trabalhadores e o desenvolvimento da cidade e do país. Porém, para chegar até aqui, nem tudo foram flores, houve também muita luta e resistência.
Houveram diversos episódios de violência policial, sendo o mais marcante, ocorrido no final de 2015, quando a PM, junto da GCM de SBC, atirou bombas de gás lacrimogêneo bem no meio da praça, onde estava acontecendo uma batalha entre os mc’s Gio e Toddy, iniciando ali a maior repressão vivida naquela Praça desde os tempos de comícios do PT (curiosamente o Prefeito da época era Luiz Marinho, justamente do Partido dos Trabalhadores). Frequentadores da Batalha foram atingidos com balas de borracha e muitos jovens apanharam nos arredores da praça. Após esse episódio os organizadores também foram alvos de processos, perseguições e coações, inclusive tendo de se apresentarem à Polícia Civil para prestar depoimentos.
Como podem ver, este evento que acontece as terças-feiras, é muito mais do que uma simples batalha de mc’s, e é por isso, que entrevistei uma das pessoas mais importantes dessa construção, Lucas Fonseca do Vale, ou apenas, dovaLe, um dos fundadores da Batalha da Matrix. Confira abaixo:
Monophono: Quando e como começou a Batalha da Matrix?
dovaLE: A Batalha da Matrix começou dia 7 de Maio de 2013. Ela começou como um passo adiante de uns parceiros que se trombavam para fazer freestyle na rua, em vários lugares. Até o momento que a gente decidiu tentou criar um tipo de encontro para ver se tinha mais gente fazendo isso por aí em São Bernardo. Já depois de um grande período de aprendizado com o Fórum de Hip-Hop de São Bernardo, com o Sarau do Fórum, com o DJ Endoque, com o Choco, artistas como o Cena7, então a gente meio que já tinha uma guia ali e após esses encontros que gente fazia em várias praças, vários postos por aí, várias ruas, a gente decidiu pedir a benção e falar que a gente ia começar uma batalha de mc’s. A gente tava pensando no lugar, não sabia aonde, queríamos um lugar de fácil acesso e aí a gente pensou na praça da igreja que tinha sido recém reformada ali né, era pedra portuguesa, depois eles colocaram os tijolinhos de chão lá, lisinho.
Monophono: Qual a importância da Batalha da Matrix para a cidade de São Bernardo?
dovaLe: Eu acredito que a relevância da Matrix aqui em São Bernardo é que ela se transformou n’um catalizador da juventude. Se você é um jovem em São Bernardo e ainda não colou na Matrix, você tá sendo jovem errado [Risos]. Mas zueira à parte, muita gente se encontra lá, se conhece, e conhece o hip-hop, principalmente. Então, eu acho que é uma grande janela para a Cultura Hip-Hop dentro da cidade de São Bernardo e especialmente para os jovens, que são a maioria do público. É um fenômeno cultural-social, é uma evidencia de que a culturas dentro das periferias não atingem direito… os órgãos públicos não atingem de forma adequada a quebrada com cultura, então a própria quebrada se organiza ali com os fluxos e tal, faz aquilo ali o lazer deles, que é o que eles gostam, e aí quando optarem por ir para o Centro, eles têm o encontro ali também na terça-feira, toda terça-feira. E isso gera muitas outras, outras coisas. É um efeito dominó muito grande.
Monophono: Por que Matrix?
dovaLe: Mano, não tem muito porquê, tá ligado. Os caras não queriam fazer Batalha da Matriz e a gente pirava numas ideias, todo mundo trocava várias ideias loucas da vida, de conspiração, coisas e tal. Eu lembro que o Dagô, o Rato, curtiram esse bagulho de pôr Matrix em vez de Matriz e aí ficou. Foi mais para mudar o nome assim, porque Matriz era muito comum. E isso foi melhor pra nóis no futuro né, a gente descobriria isso, porquê, já existem Batalhas da Matriz por aí, porque existem várias Igrejas Matriz com praça por aí né, então a gente se diferenciou com o X.
E também fez sentido com o nome porque depois a gente viria descobrir que a gente desviaria das balas de borracha e das bombas [risos], igual o Neo desvia das balas, então acho que tudo tem um porquê né, fez sentido.
Monophono: Quais foram suas principais influências e inspirações?
dovaLe: Mano, dentro de cada um ali no começo de tudo, que eram 5, 6 pessoas, existiam muitas inspirações, muitas influências diferentes, tá ligado. Mas quando a gente se juntou como um coletivo, para fazer a parada, a gente frequentava os mesmos lugares, então a gente admirava as pessoas que a gente estava vendo ali né, que são as pessoas que eu citei do Fórum de Hip-Hop de São Bernardo. A gente conheceu muita gente ali das antigas, né. Não vou citar nomes assim, um por um, mas tivemos grandes influências ali dentro daquele espaço, com certeza. E a gente sempre foi muita da rua, né mano, andar por aí em qualquer lugar, então a gente vivia muito essa intensidade mais jovem que a gente tinha da arte de rua, tá ligado, nóis fazia freestyle, nóis tocava violão, trombava os louco, tá ligado, aí vinham os punk’s, vinham os caras do circo fazer a parada, tinha os b.boy. A gente trombava com as pessoas, tá ligado, mas a gente não se organizava, não se olhava, assim, como o hip-hop junto, assim, sacou. Então, as influências elas estavam na rua, elas estavam com certeza no Fórum de Hip-Hop e é isso aí!
Monophono: Dentro desses 7 anos muitas coisas aconteceram. Desde inúmeras repressões e processos, até eventos marcantes como os Festivais de Resistência, Aniversários, Virada Cultural e até tese de mestrado…. Qual o aprendizado com tudo isso?
dovaLe: Mano, é até complicado falar, tá ligado, qual que é o aprendizado com tudo isso porque, qual é o aprendizado até agora, né? Porque a gente n’um… esse bagulho não para nunca, sempre se surpreende e aprende mais alguma parada. Mas, com certeza, até agora, cada um de nós teve que se reinventar como individuo mesmo, mudou muito da personalidade, mudou muito da ideologia, dos pensamentos do mundo, mudou muito a forma de se comunicar publicamente, e também individualmente. Mudou porque a gente teve que se instruir politicamente, a gente teve que entender as coisas um pouco mais profundamente, que as vezes a gente não analisa enquanto a gente é bem jovem, tá ligado. Então, a gente teve que se reinventar, teve que aprender muita coisa, o aprendizado até agora foi enorme em todos esses sentidos aí. Mas, com certeza, daqui um ano a gente vai ser outra pessoa e assim sucessivamente, tá ligado.
Monophono: A Batalha da Matrix já alcançou o seu objetivo ou ainda tem mais?
dovaLe: Eu acho que a gente nunca vai falar que alcançou o objetivo mano, porque tem sempre um objetivo novo, tá ligado. Como um movimento ali, como uma coisa que marcou a cidade, que fez história aqui e que, enfim, que faz parte da vida de muita gente, isso já é concretizado pra nóis, isso falando assim n’um ponto de vista local, São Bernardo do Campo, uma cidade com oitocentas e poucas mil pessoas, e São Paulo, e as cidades do ABC. Não generaliza em São Paulo porque o alcance não é tão grandão, é o segundo público e tal, São Bernardo é o maior público. Mas, eu acho que a gente alcançou o objetivo como movimento da cidade, uma coisa da cidade, e a gente fez o nosso nome no hip-hop também, entre as batalhas e tal, a gente foi pioneiro em algumas coisas. Mas tem muito mais objetivo porque a gente ainda tá aprendendo a alcançar a massa e isso é uma tarefa muito mais difícil, principalmente trabalhando com a internet e com todo o aparato da internet, isso é uma tarefa que precisa de muita gente junta e a gente não gera uma renda capaz de pagar salário, então as pessoas tem que fazer de bom grado, tem que fazer por amor, tem que fazer porque se sentem parte daquilo. Então, existem muitos outros objetivos. A gente quer muito que o nome e a batalha sejam popularizados, muito mais, e que criem oportunidades reais de transformações, de carreiras mesmo, saca? … Que os Mc’s realmente se enxerguem e consigam dar passos grandes por conta desse nome, por conta desse meio que ele tá, que é a Batalha da Matrix. Então, esse trampo é mais complicado e esses objetivos ainda vão ser perseguidos por muito tempo.
Monophono: Cite 3 momentos marcantes para você nesses 7 anos
dovaLe: Pô mano. Ah, é foda pensar né. Mas tentei sintetizar 3 momentos só e eu lembro do aniversário de 2 anos quando a gente fez de terça-feira, só que na pista, à noite, terça à noite na pista, né. A gente levou uma estrutura muito básica pra fazer a parada, nem sabia fazer evento desse porte né, a gente nem imaginava. E foi muito foda, eu tava ansioso pra caralho pra aquele momento chegar, pra pegar o busão e ir até a pista e fazer a Batalha. E a gente viu que foi muita gente, assim, mas muita gente mesmo. Logo de primeira, assim. Então a gente falou, caralho mano, a gente conseguiu a pista, que já era um espaço muito importante pra nóis ali né, a juventude de São Bernardo é muito conectada ali à pista de skate e cultura que nasce ali em volta. Então, foi muito legal esse dia, o som queimou, a gente começou a aprender sobre perreio em evento, mas as pessoas estavam muito felizes ali e tal, foi muito legal… a gente fez com uma caixa de som básica, foi foda.
Uma segunda lembrança talvez seja a repressão, que foi o gatilho ali pra gente se organizar muito mais como indivíduo e como coletivo, né. Então isso, isso marcou uma mudança na minha vida pessoalmente. Foi um período meio conturbado, mas a gente aprendeu muito e foi muito marcante pra mim.
E acho que a menção honrosa pra um outro momento aí marcante que foram as duas vezes que o Emicida teve na praça. O Emicida era nosso, sei lá, nosso Budá, tá ligado?! Nóis olhava e falava: “caralho, ele é foda!”, desde as batalhas dele, a gente pisava nos lugares que ele tinha pisado, quando a gente tava começando a viver o rap. Então a gente tava em São Paulo, tava na Hole Club, tava na Sexta-Free, tava no Santa Cruz, tava nos lugares assim que a gente via de quebradinha, só observava, e sabia que ele tinha passado ali, e ver o que ele se tornou… uma grande fonte de inspiração pra nóis e pá. E de repente ele se identificar com a Matrix e se sentir parte do bagulho mesmo e falar de nóis, marcar nóis, visitar nóis, tocar pra nóis e tipo, trocar ideia, entrevista com nóis, tá ligado. A gente se sente muito feliz mesmo, porque parça é o Emicida, o bixão é o brabo (risos). E tem esse toque especial porque a gente já olhava com admiração desde muito tempo atrás.